TECO SEADE 


Imagine um lugar com cerca de 180 rios e um bioma com o maior número de aves de todo o continente sul-americano - 650 espécies diferentes. Pense no revoar colorido que daí deve sair. Haja lugar para se banhar de vida a alma e voar com os sonhos. Mas, imagine mais: que tudo isso está em uma das maiores planícies inundáveis do planeta, ou cerca de 2% do território brasileiro. Onde as águas demarcam estações e imensidões de homens e animais. De outubro a abril, chuva e águas a cobrirem até dois terços da área pantaneira. De junho e setembro, águas a verem amansar sua força de criação e as terras voltarem a respirar o sol que vai rebrotar o tempo. Com tanta coisa de nascer e recriação, chegar e ir, cobrir de águas as mágoas e dores, num transbordar de borboletas e cantos de tuiuiú, algo tem que se fazer acontecer em melodia e poesia. E é isso que um campineiro de nascença e pantaneiro de família e alma traz em si. O Cantares e Esquinas  visitou Teco Seade no dia em que ele completava 56 anos. Com as corridas de Valentina (uma York de saltos acrobáticos) entre escadarias e sofás, cerveja e uma boa do alambique para comemorar a data, junto a amigos e familiares, Teco falou da sua infância quase cigana a acompanhar o pai entre cidades e estados. De como chegou ao coração da boa música regional em Campinas e recordou o pantanal que do seu mundo nunca saiu. Entre mil coisas a fazer e fazedor de outras tantas mil, com vocês o pantaneiro que não toca viola, mas traz com seu violão o melhor que a poesia e a música regional (a MPdoB) podem trazer.

“Meu interesse pela música começou desde que eu era muito criança. Por acaso eu nasci aqui em Campinas. Meu pai trabalhava no Banespa e, naquela época, cada vez que você mudava de cidade como funcionário você subia de posto. Meu pai passou por São Bernardo do Campo, Mogi Mirim, Três Lagoas, Cuiabá, Rio de Janeiro, Mogi Guaçu, Campinas, Jaguariúna e Pedreira. Em algumas delas por mais de uma vez. Daí, numa das andanças do meu pai, ele passou por Campinas e eu nasci aqui. Mas eu tenho uma referência muito grande com o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul. Aliás, para a nossa família, parece que o estado não se dividiu. Meu pai era pantaneiro, nascido no pantanal norte, e minha mãe no pantanal sul - Poconé e Corumbá. Quando eu passei a minha infância em Três Lagoas e Cuiabá, viajando o estado inteiro, por causa da família, isso me deu uma referência muito forte dos dois estados. Mas eu costumo dizer que o meu trabalho de composição é um trabalho de música regional brasileira.”

Só que mesmo com toda essa imensidão de terra e de bicho, de água e de vida, coisas que marcam o pantaneiro e o fazem diferente e próprio, Teco Seade vai além. Mantém suas tradições, mas mostra que música está muito além de fronteiras e tradições. Talvez também porque, por sorte, caiu em Campinas entre a nata daqueles que faziam coisa boa autoral nos anos 80.  

“Eu já fiz de samba de breque a cururu pantaneiro, de guarânia a música de protesto. Por isso mesmo, quando pensei em fazer o meu CD, não queria fazer um CD mato-grossense. Queria algo do Brasil. Campinas tem uma importância muito grande nessa coisa da música e na minha carreira. Foi onde eu conheci grandes nomes da música popular brasileira. Zeza Amaral e Pezão são dois deles. Eu era muito moleque quando apareci pela primeira vez na roda deles. E para você entrar e participar da roda deles era um sufoco. Eram muito bons e exigentes. A primeira vez que eu cantei foi quando o Alfredinho Soares estava tocando violão, no Água Furtada. Ele torceu o nariz, como a se perguntar o que aquele moleque fazia ali. Nesse dia,  comecei a pedir coisas para ele tocar que ele não conhecia. E como ele toca muito bem, corria atrás. Procurava saber quem tinha gravado tal música e eu falava de Orlando Silva e Nelson Gonçalves, entre outros. Ele achou o máximo um moleque de 17 ou 18 anos a cantar essas coisas antigas.”

 

“Mas isso acontecia por que eu tinha uma coisa: em Mato Grosso tinha o hábito de sair com os pais dos meus amigos, não saía com meus amigos. Eram pais que eram separados ou boêmios e eles também achavam o máximo eu tocar violão e cantar Noel Rosa, Pixinguinha, Ismael Silva, Wilson Batista, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Aracy de Almeida. Eu sempre fui assim: um ‘artista velho’. Aí que Campinas me apresentou os caras e eu comecei a imaginar coisas de como compor, de como escrever. Eu pensava o que os caras estavam fazendo com a língua portuguesa. Por que a boa música, na verdade, usa todos os recursos da língua portuguesa.”

Música não é somente harmonia e melodia, arranjo e sinfonia. Também é letra. Letra de música pode e deve ser poema. Poesia cantada. E para isso é preciso que a língua pátria esteja em cada verso e riso. Que faça tudo virar arte acima de tudo. É isso que Teco Seade propõe para a sua obra. E também para tudo o que faz ligado a arte.      

“Eu fui jurado do Carnaval de São Paulo durante oito anos. Durante quatro anos fui coordenador da equipe de jurados de samba-enredo. E como coordenador eu dei muita palestra para os 22 presidentes de escolas de samba e 22 coordenadores de samba-enredo. Eu dizia para eles que o critério que utilizaria para avaliar a letra deles seria o mesmo critério que a USP, a Unicamp ou a Unesp usam para avaliar as redações dos seus vestibulares. E o que é uma boa redação? Uma boa redação é um bom conto, uma boa letra, um bom poema, uma boa poesia, um bom romance. Ou seja, o bom de tudo isso é quando o autor consegue usar com maestria, ousadia e inteligência os recursos da língua portuguesa.” 

“Lá atrás, quando eu era muito moleque, ficava a ler as letras do Zeza Amaral, as letras do Pezão com o Pimenta, do Alfredinho, do Sérgio Samambaia. Por exemplo, o Sérgio Samambaia escreveu uma coisa chamada Valsinha. É assim: ‘Um dia, um dia uma valsinha linda fez um sonhador. Sonhava com grande tristeza por não ter amor. O vento acompanhou as cordas do seu violão e impulsionou as notas junto da janela. E debruçaram todos em oração. A musa inspiradora ouviu toda a lamentação e, à sombra das acácias, perto da varanda, esparramou as rendas rabiscando o chão. A lua deu lugar ao sol, bastante constrangida, sei lá se por ciúme da seresta clássica ou dos bordados feitos pela renda mágica, do cantar sereno, da valsinha-lua, da plateia feita por homens da rua.’ É uma letra de música. Daí eu comecei a pensar: nossa, eu preciso usar a língua portuguesa. Eu preciso criar imagens. Eu preciso construir imagens. Eu preciso usar o sentido figurado da língua.”

 AS METÁFORAS DO MUNDO

“Aí, o Chico Buarque vem e fala assim: ‘Na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça o teu vestido e o meu sapato ainda pisa no seu’. Quer forma mais bonita para dizer à mulher que você ainda a ama? Esses caras foram o meu embrião em termos de composição. Comecei a usar a língua portuguesa, comecei a mexer, descobrir, estudar, pesquisar. Hoje em dia, se você pedir para qualquer um desses nomes que eu citei aqui fazer uma música ruim ou letra brega ou comercial, ninguém consegue. Por que essa coisa de realizar um bom trabalho está enraizada na gente. O seu nível de exigência fica cada vez mais apurado. Eu criei, ao longo dos anos, uma metodologia pra mim. Quando faço uma música nova, não mostro ela pra ninguém. Declamo a música. Se a pessoa gostar do texto, da letra, do conteúdo e da forma que esse conteúdo está expresso, aí eu começo a mostrar a música. Ao longo desses anos todos fui descobrindo vários parceiros também. O Zeza, o João Luiz Lancelotti, o João Ormono, que é um parceiro lá do Pantanal e nos conhecemos num festival, assim como tantos outros”.

Como vida de artista é meio coisa cigana, Teco Seade fez da sua estrada um caminho de festivais por todo Brasil. Ao contrário do que muitos de nós pode pensar, os festivais não morreram. Se já não têm o patrocínio das emissoras de tevê, que produziam muitos deles, e por isso saíram das manchetes de jornais ou das telinhas, eles ainda sobrevivem e dão o tom de coisa nova na MPB.

“Eu perdi o número de tantos festivais que já fiz. Não sei se foram 50 ou 90. Já participei do Prêmio Visa, que foi o maior festival de música da América Latina. Na verdade, dos principais festivais que têm no Brasil já participei de todos. Sempre foi com aquela coisa da qualidade mesmo. Como show, que pra mim é diferente. Quando eu vou tocar num bar, vou tocar num bar. Show é uma coisa diferente de tocar em bar. Toda a vez que eu fui para algum teatro, sempre teve diretor cênico, diretor de iluminação, figurino, cenógrafo, diretor geral do espetáculo, diretor musical. Show, pra mim, é um compromisso que estou assumindo com o público. Por isso eu costumo dizer que o teatro é a minha casa.”

“Fui, inclusive, fazer curso de teatro, por exemplo, sem pretensão nenhuma de ser ator. Eu queria era absorver elementos da arte cênica para completar minha carreira como intérprete, que é outra coisa que eu adoro fazer também. Adoro pegar uma música já consagrada, que todo mundo já ouviu com um grande intérprete e mudá-la, fazer outra coisa e deixá-la bonita. Esse é o desafio. Gosto de passear pela interpretação, pela composição e confesso que não tenho uma paixão exacerbada pelo instrumento. O instrumento musical, para mim, é um instrumento para eu poder trabalhar, compor, mostrar, fazer um show e me apresentar. Mas eu não domino grandes arranjos, grandes harmonias. Não é uma coisa que me fascina.”

“Admiro, adoro ver Yamandu Costa tocando violão, um Paulinho Nogueira, um Toquinho. Sou fã desses caras. Até por isso a minha crítica com alguns festivais. Se é um festival de composição e você está no júri, você deve julgar a letra e a melodia, que são os componentes de uma música. Mas, muitas vezes a melhor música não ganha, por que não estão ali o melhor arranjo, o melhor intérprete, o melhor instrumentista, a performance no palco e não sei o quê. Isso é uma crítica construtiva que faço em relação aos festivais. Por que se você está num júri de festival de composição, já tem lá o prêmio de melhor intérprete, melhor arranjo, melhor letra etc. Então eles deveriam focar na melhor música. E você pode chegar lá e cantar à capella, sem arranjo, sem instrumento. Afinal, você está cantando e dando para o jurado a melodia e a letra. Hoje nós temos mais de 300 festivais por ano no Brasil. Eles estão vivos. O que acabou foi a divulgação na mídia da forma que deveria ser. Por que eles são um patrimônio da cultura brasileira. É só você visitar o site https://www.festivaisdobrasil.net/ para ver quantos eles ainda são. Tem final de semana que tem de quatro a cinco festivais.”

HORA DA MPBdoB

Hoje, a música regional passa por um processo de mudanças. Ganhou novas qualificações e gêneros. Para muitos, ela se dividiu em ramificações que tentam criar novas tribos e modismos, formas de criar nichos de venda e comercialização da arte. Entretanto, para quem faz a verdadeira música regional, o importante é mantê-la viva e, se possível, até resguardá-la num canto próprio, numa nova nomenclatura, se preciso for.      

“Outra coisa que me fascina muito é a música regional. Se você pegar os estilos da música brasileira, vai ver que muitos perderam a essência e a qualidade natural. Mas se você pegar a música regional, como a música sertaneja, que faz parte da moda de viola, regional ou sertaneja, vê que ainda é a mesma coisa. Só que a coisa desvirtuou de tal forma que tem gente que fala que não faz o regional, mas sertanejo universitário. Ou diz que faz moda de viola de raiz. Começaram a mudar a nomenclatura para poder se definir perante o público. E todas as vertentes são diferentes. Eu me enquadro hoje numa coisa que o Zeza lançou e eu vesti a camisa - o MPdoB. Não é MPB, que é e junta tudo, como rock, rap, samba, pagode, sertanejo e tantos gêneros mais. Por isso lançamos o MPdoB, que é a Música Popular do Brasil. A música regional me fascina porque ela preservou sua identidade. Ela não abre mão dos recursos da língua portuguesa. E nesses compositores regionais eu destaco o Zeza Amaral, o Pezão quando quer fazer regional, Almir Sater, Renato Teixeira, Renato Borghetti e Dominguinhos, entre outros.” 


“Então não é difícil você pegar uma letra da música regional e comparar com uma do Chico Buarque. Ver que a forma de trabalhar a letra é muito parecida. E digo o Chico porque, para mim, ele não é cantor, não é compositor, não é intérprete, não é letrista, não é instrumentista, não é nada. Pra mim, o Chico é uma escola onde muita gente bebeu da fonte, inclusive eu. A opinião pessoal e política dele é outra coisa. Mas a obra do Chico Buarque é uma escola. De carona ainda curti, na minha etapa de descobrir compositores novos, no passado, Gonzaguinha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, João Bosco e parceiros.”

Mas o que marca a música regional? Há alguma coisa ou instrumento exclusivo para tocá-la? Ou o importante é o coração bater mais forte e a poesia fazer acontecer aquilo que letra e música traduzem e trazem em si?

“Uma vez aconteceu um negócio engraçado comigo. Fui gravar um programa de televisão de música regional e o produtor do programa perguntou que instrumentos eu levaria, para que ele pudesse preparar o estúdio. Daí eu disse que ia levar violão, baixo acústico, sax, flauta, percussão e violão de sete cordas. E que iria cantar e declamar. Aí ele ficou meio desconcertado e perguntou se eu não ia levar uma viola. Foi quando eu expliquei que a viola pertence à música regional, mas a música regional não pertence necessariamente à viola. Daí eu falei de um cara que deveria ser colocado numa redoma de vidro para ser reconhecido pelas futuras gerações: Renato Teixeira. E citei o Dominguinhos e o Borghetti. Nenhum deles toca ou tocava viola. E são o que há de melhor na música regional brasileira. Logo, a música regional não depende só da viola. Para mim é preciso desmistificar que a moda de viola e a música regional dependem exclusivamente da viola. Muitas vezes há compositores que compõem até sem violão, só com uma caixinha de fósforo. Uma coisa é o cantor do vozeirão, o intérprete. Outra coisa é o compositor. E sem esse último o resto não trabalha. Mas, no Brasil, a gente ainda teima em aceitar o compositor.”

E como foi chegar e cair de paraquedas em Campinas? Para um cantador e músico de fora, a Campinas do início dos Anos 80 era profícua em bares e casas noturnas que traziam som ao vivo e traduziam o que de melhor estava sendo feito localmente e nacionalmente. Mas, para fazer parte da turma que criava e compunha, soltava a voz nas madrugadas, não era algo fácil. Só que Teco Seade ganhou um pai nessa empreitada, ou melhor, um paizão.      

“Um tempo eu morei em Itatiba, onde fiz dois anos de faculdade de Psicologia. Nessa época a minha família já morava em Campinas. Nos finais de semana, de violão debaixo do braço, eu ficava por lá, para tocar em bares, encontrar um pessoal, músicos espetaculares que levavam um som legal por lá. Chegava a ficar dois meses sem vir para casa. Assim, depois, quando vim para Campinas concluir o curso de Psicologia, já trazia uma boa referência musical, por causa desse pessoal de Itatiba que frequentava muitos festivais de peso. Eu sabia que se estudasse, pesquisasse, me dedicasse, ia me tornar um compositor.”

“Quando vim para cá, consegui entrar numa panela local, formada pelo Zeza, Pezão, Alfredinho. Eu ficava sentado na mesa com o Paizão, pai do Alfredinho e do João Luiz. E esse foi um cara importante na minha vida. Ele já faleceu. A última noite de boemia dele foi comigo. Deixei ele em casa às seis horas da manhã de um sábado para domingo, mas durante o dia ele morreu. O Paizão era um baita percussionista. Um dia teve a brincadeira de colocarem um metrônomo quando ele começou a tocar o surdo. Era para tentar ver se ele ficava até o final no mesmo andamento. Não deu outra. O cara era impecável. Do início ao fim no mesmo andamento, como se tivesse um metrônomo instalado no ouvido. Eu fui proprietário de alguns bares em Campinas. O ‘Mais Um Bar’ foi um deles. Eu colocava no cardápio a homenagem do mês. E o Paizão foi uma delas. Ele era o meu pai da madrugada.”

“Um dia fui no Água Furtada, que era o bar do Zeza, e ele, o Pezão e o Alfredinho estavam tocando lá. Daí sentei na mesa defronte do palco e o Paizão, de longe, via que as músicas antigas eu cantava todas. Aí o Paizão foi chegando e sentou na minha mesa. Eu estava com a minha irmã. Ele foi conversando, rindo, a gente se entrosando. Desde então eu já sabia que dali ia nascer uma amizade pra sempre. Até que ele chegou para o Alfredinho e perguntou se ele não ia deixar eu cantar uma música. O Alfredinho torceu o nariz, mas deixou. Cantei uma do fundo do baú, porque o Alfredinho era um grande pesquisador da MPB. A partir dessa primeira, varei a noite. Toda a vez que eu chegava no Água Furtada, mesmo sendo principiante e ficando no fim da fila para esperar a vez, subia para cantar. Ali tinha também sessões de música autoral. Foi quando eu cresci os olhos. Na verdade, o meu começo não sei se foi atrevimento ou sorte, mas o Paizão estava lá naquele dia em que tudo começou. Daí ele me adotou. Tanto que o Paizão, depois de um tempo, ia mais no meu bar do que no bar do Alfredo, que era filho dele.”

AQUÁRIO DO J. TOLEDO

“Esse meu bar, inclusive, teve umas histórias muito legais. Quem costumava ir todas as quartas-feiras lá era o J. Toledo (artista plásticofotógrafocronista, escritor, biógrafo e boêmio). Nesse dia eu já avisava o garçom para deixar a mesa dele pronta. Ele ficava sempre na mesma mesa e trazia o próprio uísque. Eu só colocava era o balde de gelo. Na mesa do Jota só sentava quem ele quisesse. Depois, eu sempre levava ele para a sua casa, que ficava em Sousas. Numa dessas vezes, já com o dia raiando, ele estava comigo e falou, meio assustado, que era para eu acelerar o máximo logo o carro depois que o semáforo abrisse porque havia um aquário humano pronto para explodir do lado. Olhei e nada mais era do que um ônibus lotado, no início da manhã, parado do lado do meu carro. Mas, na sua visão de escritor, parecia mesmo um aquário humano a partir das janelas.”

Mas Campinas mudou muito. Todo o universo do passado, quando as pessoas e a cidade respiravam outros ares, se transformou. De uma cidade de 600 mil habitantes, nos Anos 80, ela dobrou de população e novos bairros surgiram. O centro da boemia se esparramou e teve fim o romantismo de um Cambuí onde repúblicas de estudantes proliferavam e bares emitiam sons e música para a vida. A tecnologia também trouxe nova realidade para todos. De um mundo sem celular e internet, ganhamos em pouco tempo uma aldeia global. E as pessoas e a arte não conseguiram passar incólumes.    

 “Hoje eu não sei como seria minha chegada na vida musical campineira. Na época de faculdade, quando a gente se reunia em república, se você não tocasse o suprassumo da MPB nem pegava no violão. Hoje, a gente sabe que essa garotada que passou na USP, na Unicamp e na Unesp é uma elite intelectual. E infelizmente, com raras exceções, quando eles se reúnem para fazer festa ouvem funk. Mas até a festa na república mudou. Antes era aquela coisa melancólica, intelectualizada, do cigarro e da cachaça, da meia luz. O som rolava e aquilo parecia que não ia ter fim. Nascia o sol e a gente tampava a janela com a cortina, para não parecer que era dia. Antigamente, há uns 30 anos atrás, uma garota de 15 anos ganhava uma viagem para a Disney de presente e, quando voltava, era assunto do ano. Hoje o moleque vai para a Disney e comenta um ou dois dias e acabou o assunto. Isso porque quando ele está na montanha-russa, está filmando e colocando na rede. Todo mundo já sabe que ele esteve lá.” 

“Da mesma forma mudou a boemia. Hoje, furar uma ‘máfia musical’ igual a que eu furei lá atrás fica difícil. Agora, muitos dizem saber de música, mas se você pegar o nível intelectual das letras, na maioria das músicas, é de uma criança de dez anos. Se você pegar um menino que teve nível cultural por estudar em boas escolas, com 10 anos ele já faz letras que depois explodirão. Quando que a letra é ruim? É quando você pega uma criança de quatro ou cinco anos e ela canta a música inteira. Isso significa que aquela letra está no nível intelectual de uma criança de quatro ou cinco anos. E o mais triste é ver jovens de 15, 25 ou 30 anos cantando essas coisas. Você esperaria que eles cantassem coisas de um nível intelectual maior, compatível com a idade deles. Mas isso é culpa de todo um processo que a gente vem sofrendo no Brasil há décadas. Antes de 1.964 a gente tinha de 17% a 20% do orçamento voltados para a Educação. Quando acabou o regime militar a gente estava com 4% ou 5%. Nós emburrecemos nossos jovens. Aí você vai querer exigir que uma população mediana, com um nível cultural mediano, seja diferente do que é hoje? Se você pegar o Colegial de hoje ele equivale ao Ginásio de há 30 anos. O nosso País é vítima dessa falta de interesse de canalizar  energia e investimentos para a Educação.”

 

Diante dessa realidade é possível acreditar que o Brasil ou a verdadeira música regional ainda poderão dar a volta por cima? Será possível poder ouvir música de qualidade num mundo que parece ser mais descartável do que os 15 minutos de fama de Andy Warhol?

 “Hoje, quem gosta de música regional é quem sempre gostou. Se você pegar o perfil de quem gostava de música regional nas décadas de 60, 70 ou 80 do século passado é o mesmo de hoje. É quem tem sensibilidade, nível cultural mais elevado etc. Hoje você vê gravações que são feitas no quarto de dormir da molecada. Vai para o estúdio só pra botar voz, masterizar e remasterizar. Você não precisa mais ir a um estúdio para gravar o instrumento. Grava em casa, no quarto. É tudo por cabo. Nesse aspecto, a informática e a tecnologia facilitaram bastante. Você gravar um disco hoje é o menos difícil. Mas, para você divulgá-lo no Brasil e fazer estourar, gasta de R$ 3 milhões a R$ 4 milhões. E mesmo assim pode ser que o disco vire, como pode ser também que ele não dê em nada. Se você tiver todo esse dinheiro e não montar uma equipe que tenha todos os canais certinhos, não vira. Assim, mesmo se você tiver toda a tecnologia para mostrar coisa boa, fica a pergunta: mostrar pra quem?”

 “Já teve um cara, no passado, que era jurado de um festival, e perguntou pra mim sobre uma música onde eu dizia que a chuva era a piracema dos mares. Ele falou que eu estava errado, porque chuva não era piracema. Teve outro que falou de outra música, onde eu dizia que o moinho sopra o vento. Segundo ele, a letra estava errada. Que era o vento que soprava o moinho, não o contrário. Tentei explicar aos dois que isso, na língua portuguesa, se chama metáfora. É a construção de uma imagem poética. Ou seja, são exemplos claros de como está difícil a realidade atual.”

“Por isso, viver de música em Campinas é como viver de música em Bauru, Araçatuba, Santos, São Paulo ou Guarulhos. É igual em qualquer lugar do Brasil. Eu, por exemplo, não sobrevivo de música. Sobrevivo de arte. Faço projetos culturais, shows, sou diretor cultural da Academia Nacional de Letras, sou diretor cultural do Portal do Poeta Brasileiro (com mais de 56 mil poetas inscritos e dois encontros nacionais por ano), faço teatro infantil, teatro adulto, espetáculos musicais adulto e infantil, espetáculos arte-educativos para criança, trabalho numa editora, sou editor de livro, diagramador, capista. Também faço um trabalho voluntário e de palestras em escolas, como psicólogo, sobre sexualidade. Em tudo que envolve arte eu estou metido no meio. Participo ainda de festivais, o que de vez em quando dá um dinheirinho de premiação. Quer dizer, se você tiver juízo, dá para sustentar a família e levar uma vida normal, sem esbanjar. Logo, acho que dá para viver de arte.”

 PS.: As fotos incluídas nesta reportagem são de minha autoria e do arquivo pessoal do artista.






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